Uma das mais significativas questões inseridas recentemente nas reflexões do campo científico arquivístico é a discussão da salvaguarda da memória social e as relações de poder dela emanadas (Cook, 2012, Cook, 2004, Cook; Schwartz, 2002). Durante muito tempo os arquivos foram entendidos como ?guardiões? neutros e impessoais de memórias homogêneas, supostamente representativas de uma identidade coletiva. A partir da perspectiva da Arquivística pós-custodial, emergente em fins do século XX, os arquivos começaram a ser problematizados como ferramentas de hegemonia ou de resistência, recursos a serem apropriados/manipulados por disputas políticas e narrativas as mais diversas. Nesse contexto, o caráter presumidamente ?natural? do processo de formação de fundos documentais foi desnaturalizado em face de evidências, baseadas em técnicas da Diplomática, de que arquivos, em distintos contextos históricos, foram coligidos e frequentemente reconstruídos não apenas para conservar os registros de transações legais como também para servir a propósitos históricos, religiosos, simbólicos e/ou militares, envolvendo personagens e eventos considerados merecedores de celebração ou de memorialização (COOK, 2012). A dimensão do poder dos arquivos sobre a construção do conhecimento histórico, na formação de identidades e de memórias bem como na produção de silêncios e esquecimentos é explicitada na não inclusão sistemática de diversos segmentos sociais como mulheres, povos indígenas, comunidades quilombolas, camponeses, homossexuais, minorias étnicas, entre outros, nos instrumentos e instituições de memória documental da sociedade. No último quartel do século XX, especialmente a partir do contexto brasileiro de resistência à ditadura civil-militar, assistiu-se ao desenvolvimento de experiências de formação de acervos por organizações da sociedade civil representativas de grupos historicamente ?marginalizados pelo empreendimento arquivístico? (COOK, 1998). A concepção do acervo documental da Comissão Pastoral da Terra (CPT) emerge nessa conjuntura. Fundada em junho de 1975, no âmbito da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a instituição surgiu como ?resposta à grave situação vivida pelos trabalhadores rurais, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia, explorados em seu trabalho, submetidos a condições análogas ao trabalho escravo e expulsos das terras que ocupavam? (CPT, 2018). A realidade que motivou a criação da CPT refletia o acompanhamento das contradições e antagonismos que marcaram as ações governamentais planejadas para a região amazônica pelos governos civis-militares, especialmente no que se refere à ocupação das terras num processo iniciado na década de 1960 e intensificado nas décadas seguintes. O desconhecimento da região e de seus centenários ocupantes e a ausência de democracia provocou superposições de ocupação e posse, gerando graves ocorrências de conflitos entre os antigos ocupantes e os recém-chegados, fossem estes empresários do centro-sul e sudeste do país ou famílias ?sem terra? do Nordeste. Os embates políticos e jurídicos resultantes desse processo foram marcados sobretudo pela violência contra camponeses, posseiros, peões e indígenas. A instalação de grandes obras de infraestrutura como rodovias, hidrelétricas, projetos de mineração e serrarias ampliou a ação repressora de agentes públicos e privados sobre aqueles grupos, implicando em graves violações de direitos, em especial no que concerne ao direito a terra, culminando em expulsões, ameaças, prisões e assassinatos. Por outro lado, engendrou ações de resistência e de múltiplas formas de luta que foram apoiadas e documentadas por religiosos e leigos atuantes junto a CPT. Segundo avaliações expressas em documentos da Igreja, por ter uma ?cobertura institucional?, a CPT propiciou a visibilidade política dos conflitos fundiários.